“Lasciate ogni spernza, voi che entrate”. Ou: Perdei toda a esperança, vós que entrastes. O verso está em Inferno, a primeira das três partes de “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri. O mesmo verso poderia figurar na bandeira desta pátria, substituindo a inútil premissa de ordem e progresso.
Conhece os estágios de Kübler-Ross? Pelos quais o doente terminal passa? Negação, raiva, negociação, depressão e aceitação. O primeiro estágio consiste na negação, como forma de defesa, o indivíduo se nega a aceitar o problema, se desviando ao máximo do contato com a realidade. O segundo estágio é a raiva, a pessoa se sente injustiçada, não entende o motivo de estar passando por isso, tornando comum que a culpa seja transferida para o outro. No terceiro estágio, o indivíduo chega a barganhar tentando negociar consigo mesmo, faz promessas desmedidas diz que daqui para frente vai ser uma pessoa melhor, mesmo tendo a consciência de que todas essas promessas são infundadas. Quando o penúltimo estágio chega, a depressão, a atitude é o isolamento, e, percebendo que é impotente diante de toda essa situação, o indivíduo entra no seu mundo interno. O quinto e último estágio é a aceitação, quando a pessoa passa a enxergar a realidade como realmente é. O desespero vai embora e ela, finalmente, está pronta para aceitar a morte.
Esses estágios se assemelham aos fossos do oitavo círculo do inferno (Malebolge), contidos na obra de Alighieri. No quinto fosso encontram-se os corruptos, submergidos em um lago de piche fervente. Ligado por uma ponte está o sexto fosso, onde são punidos os hipócritas. O autor desse texto ainda não achou relação melhor para explicar o que acontece neste país. Aqui, com as cabeças viradas para as costas, impossibilitados de olhar para frente, todos se abraçam à morte no minuto em que aceitam a corrupção como natural. Sim, são afirmações céticas.
Procure bem lá no fundo e diga a todos, qual é a sua fantasia mais íntima? A paz mundial? Foi o que eu pensei. A mulher do vizinho? Ganhar na Loteria? Humilhar todos aqueles que te fizeram mal? Tem fantasias com poder? Dinheiro, muito dinheiro? O que você seria capaz de fazer para realizar suas fantasias? Vamos lá, pense. Quero que entenda a mentalidade humana.
Segundo a teoria de Lacan, as fantasias têm que transitar fora da realidade. Porque no instante em que se consegue atingir esta ilusão, já não há mais sentido. Não se pode querer mais o que já está em sua posse. Para poder continuar a existir o desejo, esse tem de ser nutrido, essencialmente, pela ausência do objeto desejado. Você não quer “algo”, quer toda a fantasia ao entorno de possuir esse “algo”. Nesse sentido o desejo apoia fantasias cegas, alucinações. Foi essa a premissa de Sigmund Freud ao dizer que “A crença em Deus subsiste devido ao desejo de um pai protetor a imortalidade, ou como um ópio contra a miséria e sofrimento da existência humana”.
Lacan diz: “O desejo não é, portanto, nem o apetite de satisfação nem a demanda de amor, mas a diferença que resulta da subtração do primeiro à segunda, o próprio fenômeno de sua fenda”. Então, a partir dos pressupostos de Lacan podemos entender que: preencher a vida de desejos é dar voz a um inconsciente que só conhece a lei da posse, que é tão vazia de sentido quanto o numerador de uma fração sem denominador. Assim, o verdadeiro significado de ser humano é a luta pela aproximação entre Dante (o homem) e Virgílio (a razão). Não devemos mover a vida pela alucinação do desejo, mas pelos momentos de compaixão, pelo altruísmo levado à última consequência. Afinal, como disse Albert Camus, “a grandeza do homem consiste na sua decisão de ser mais forte que a condição humana”.
Restasse em mim alguma esperança na honestidade pátria, ficaria sensibilizado com o pensamento de Lacan. Mas, para mim, assim como a “Divina Comédia”, este país é, sem dúvida, uma formidável obra de fantasia e de representação poética dantesca, no pior sentido da palavra. O que difere as duas obras, além de que uma já está acabada, são os pontos limites que a inteligência e a estupidez humana podem alcançar. Dito de forma direta, o que quero dizer é: o desejo somado à cegueira de um povo, nos leva as piores barbáries com a consciência mais tranquila do mundo. Nos tornamos rudes e dementes.
![]() |
---|