O carro sofria para alcançar o topo das ladeiras da comunidade. Subia de segunda marcha escalando o calçamento entre ruas improvisadas. A cada descida a barriga esfriava apesar do calor de outubro. A cada subida se via melhor a paisagem da Vila Jerusalém. Telhados despontam irregulares da superfície de construções, e plantas raras enfeitam de verde a cena cor de tijolo, cimento e cau.
Do alto de uma certa ladeira é possível ver o rosto do senhor Jamaica, se você olhar para o lado certo. Ao longe, do tamanho de uma casa, com uma árvore magra a frente. Aceleramos e voltamos a mergulhar de volta na "Jeru". Percorremos mais duas ou três ladeiras até chegar ao lado da pintura.
O artista plástico piauiense Washington Gabriel assina apenas WG. Nascido e crescido no bairro Redenção, logo ao lado da Jeru, conhece a vila como poucos, das crianças os moradores mais antigos. Fui guiado pelas ladeiras do lugar por um amigo dele e um estudante de artes visuais e admirador.
WG é um nome de peso no grafite teresinense. Tem a habilidade de pintar retratos realistas na ponta do spray. O resultado é de tirar o fôlego. Há uma obra sua na parede do Centro Acadêmico de Artes Visuais Arnaldo Albuquerque - o Carnal -, no Centro de Ciências da Educação, da UFPI, o rosto do próprio Arnaldo, artista pioneiro dos quadrinhos no Piauí. Há um enorme João Cândido, líder da Revolta da Chibata, no viaduto da Avenida Higino Cunha. Há muitos outros rostos espalhados por Teresina, e basta ver o primeiro para reconhecer a mão do artista em todos os outros.
Encontramos WG montado no andaime debaixo do sol de meio dia de sábado. Uma máscara respiradora escondia a longa barba e sorriso fácil que logo apareceu. Ainda finalizava a tela do senhor Jamaica. O homenageado foi um dos fundadores da Vila Jerusalém. É um personagem conhecido na vila e desconhecido no resto da capital. “Fazer um painel desses é dar importância para uma pessoa que talvez seja até invisível para a sociedade. Também quero ver o desenrolar disso, o que os vizinhos vão falar, ver como a galera reage. Essa é a lógica do trampo”, disse enquanto tentava escapar do sol sob uma pequena marquise.
O grafiteiro está realizando o projeto "Entra pá tu ver", da periferia para a periferia. São personagens do cotidiano, conhecidos apenas para quem é da “Jeru”. A ideia é pintar 10 painéis, com rostos de moradores que são escolhidos pelo artista e outras pessoas da vila. “Já tem algumas pessoas que eu escolhi pintar. A gente tem um núcleo aqui, a gente avalia o que seria importante mostrar”. O primeiro retratou o Palhaço, um velho conhecido da Vila. Depois veio Jamaica. Agora, já estão lá dona Marcilene e Joana Úrsula, mulher mais velha da Jeru aos 103 anos de idade. Uma das lideranças na luta pela ocupação do terreno.
As pinturas impressionam pelo realismo, e transformam a imagem da Vila. São exemplos do grafite que valoriza uma área esquecida pelo poder público e atende ao compromisso social que a arte urbana encara sem medo. “Grafite é uma arte que nasceu nos bolsões de pobreza pelo mundo. Acho que aqui, na Jerusalém, é um local onde ele vai estar mais bem ambientado. E fazer o grafite aqui é um presente para a comunidade e para mim também, por que todo mundo fala em resgatar a origem do grafite”, explica WG. Para ele nas ruas da Jeru sua arte cumpre seu papel real, “que é levantar alguma discussão, alguma indagação social".
O lugar do grafite, de fato, é a rua. Essencialmente, o grafite nasceu nas cavernas, com nossos ancestrais usando sucos de frutas, carvão, seiva de plantas e terra para riscar paredes. O que conhecemos hoje partiu da década de 60, em Nova York, nos Estados Unidos da America, de braços da dos com a cultura hip hop. Surgiu das ruas e acabou por retratar suas necessidade e mazelas, e junto com o rap e o break, o grafite nasceu como uma forma da comunidade se expressar.
O grafite atravessou décadas sendo uma forma de arte desconsiderada, por estar fora dos cercados da arte acadêmica e erudita. Além de ser classificada como ilegal, já que muitos desenhos eram feitos sem a permissão do dono da parede. Entretanto, a arte urbana se desenvolveu e criou variadas formas de expressar, tanto em pinturas como colagens, performances, fotografias, projeções e instalações que vão além da simples peça de arte: dialogam com o que está em volta, geram novos significados para as paisagens que habitam.
Hoje vive uma época mais confortável. Os olhos do mercado mais tradicional de arte se voltaram para o grafite nas últimas décadas, e o estilo passou a figurar galerias e exposições, algumas bastante grandiosas, como as protagonizadas pelo artista inglês Banksy. Não há necessidade de ver o fenômeno com maus olhos: apesar de haver, por parte de alguns artistas, a apropriação de um estilo urbano para o comercio, o financiamento também gerou possibilidades de se construir grandes obras. E não necessariamente esquecendo seu poder de significado.
Há alguns anos, Banksy chamou atenção mundial por desenhos que fez no muro que separa Israel dos territórios palestinos na Cisjordânia. O muro, amplamente criticado pelas entidades internacionais, gerou um símbolo de segregação. Banksy pintou entre outras obras, uma linha pontilhada, como se fosse possível recortar uma porta no muro. Os grafites do inglês sem nome (a identidade do artista, se é que se trata de um só, é desconhecida) satirizam a construção, e só fazem sentido ali, naquela parede e naquele contexto.
Hoje, o maior grafite do mundo, segundo o Guinness Book, está localizado na cidade do Rio de Janeiro, na Orla Conde, Zona Portuária. O mural "Etnias", do paulistano Eduardo Kobra, foi feito para os Jogos Olímpicos do Rio e retrata os rostos de cinco indígenas, de cinco etnias diferentes, uma de cada continente da Terra. Inspirado nos anéis olímpicos, o painel tem 170 metros por 15 de altura. Como nas ruas da Vila Jerusalém, em Teresina, os rostos geram representatividade direta com as pessoas que passam diante deles.
![]() | ![]() |
---|
![]() |
---|