top of page

em suspenso

por: Ananda Oliveira

     Tenho a mania de observar as pessoas, as manias das outras pessoas, enquanto ouço música e penso na morte da bezerra. Principalmente no 401. Tudo isso simultaneamente, e sim, é uma confusão. Como administro isso é assunto para o divã da analista que não tenho.

 

     Acaba que o banco desconfortável do ônibus, algumas vezes dividido com outro passageiro mais espaçoso, se converte em divã e tão logo me “acomodo” por ali. Fone de ouvido plugado, seleciono a trilha sonora de mais uma viagem, literal e figurativamente, sem saber as conexões que vou estabelecer entre a Frei Serafim e a parada final. É um lance etéreo, talvez místico. Muitas referências e ligações improváveis entre o que vejo, ouço, penso e sinto ali.

 

     É a ideia para um livro que nunca escreverei. Saudade de casa e dos amigos. Conflitos existenciais. O moço bonito que entra no ônibus. As contas a pagar. Ou apagar? O sonho adolescente de ter uma banda, pero talento zero. Viro a cabeça para o lado, “discretamente”, tentando descobrir o livro que ele está lendo. Acho graça e beleza nas pessoas que se empolgam enquanto ouvem música, cantam ou ensaiam um movimento contido nos seus assentos. A vontade de viajar o mundo ou apenas de ter um lugar vago no ônibus, o que às vezes é até mais improvável de acontecer, inclusive. Do 401 vi malabares, pedintes, ambulantes, calouros a caráter fazendo pedágio, vi a vida pulsando na cidade. Gente existindo quando tudo parecia conspirar contra.

     Sei que você aí é assim também. Quer dizer, imagino. Há outras tantas coisas que nos perturbam, mas não sobra muito tempo, disposição ou mesmo saúde para pensar sobre. Assim, as viagens mentais me parecem um bom uso das horas diárias de espera e locomoção pela cidade. Muitas horas, diga-se. Viajo nos sons, olhares e quietudes enquanto atravesso a ponte JK fervilhando ao sol do meio-dia ou na rara brisa das sete da manhã, sem entender cadê as árvores que estavam ali. Era bonito, mesmo! O verde coloria a selva de pedra ao redor. Agora, máquinas e só.

 

     Concentrar em cada fragmento dessa confusão me faz sentir um pouquinho mais viva e até menos esquisita. Afinal, todos tem suas pequenas peculiaridades. De perto ninguém é normal, cantou Caetano. E é engraçado observar esse movimento natural de ser e estar no mundo, a bordo do 401 ou em qualquer outro lugar. O extraordinário está nas coisas mais cotidianas e, como já deu pra notar, vejo grande valor nisso.

     Fato é que tudo isso é um grande exercício: abrir os olhos para o incomum, se é que isso existe mesmo. Gente das mais variadas formas, tipos, tamanhos e adereços podem embarcar ali a qualquer momento. E pode apostar que vão! A gente aprende que o eu é um outro e de repente posso ser aquela vista pela lente do estranhamento.

     No 401 todo dia é um 7x1 diferente: é o motor que enguiça, a falta de assento vago e de ar-condicionado, a impossibilidade de embarcar, a lotação bem acima do permitido e do bom senso. E, ainda assim, cheio do lirismo das coisas simples que insisto em me apegar. Já nem penso onde estou. Só me importa essa sensibilidade bonita que chegou de mansinho, querendo ver beleza e graça e algo além do tédio de todo dia. Porque essa coisa estranha que chamamos de vida é bonita demais, apesar de tudo. É gostoso ver que tanta gente diferente coexiste no mesmo tempo e espaço. Só fico triste ao ver que nem todo mundo está aberto a isso. Daí, sinto o mau cheiro ao entrar na UFPI avisando que é hora de descer do ônibus. Há vida lá fora. 

© 2016 Meduna - Loucura Pouca é Bobagem

bottom of page