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     A cultura cigana ainda é um mundo desconhecido para grande parte da sociedade. Você sabe dizer quem são os ciganos? De onde surgiram? Quais seus costumes e tradições?   

     Especialistas acreditam que os ciganos surgiram na Índia, uma vez que o idioma falado por eles tem muitas semelhanças com várias línguas do continente indiano. Atualmente estima-se que existam de dois a cinco milhões de ciganos espalhados pelo mundo, concentrados principalmente em países da Europa Central. A cultura cigana é dividida em três grandes grupos: os Sintis, que habitam países como Itália, sul da França e Alemanha; os Kalóns, que são os criadores do flamenco e responsáveis pela popularização da figura da dançarina cigana; e, por fim, os Rom, que habitam os países bálcãs e são considerados os ciganos autênticos, por isso são o grupo mais estudado pelos pesquisadores.

     No Brasil, os primeiros registros da chegada de ciganos são de 1574, sendo o português João de Torres, do grupo Kalóns, um dos primeiros a pisar em solo brasileiro. Documentos históricos revelam que nessa época tivemos um grande crescimento da comunidade cigana em Salvador, na Bahia. Assim, a primeira capital colonial do país tornou-se a cidade mais importante para os ciganos no Brasil. 

     Para tentar conhecer um pouco da cultura Cigana, a equipe do Meduna conversou com Osvaldo Amarante, ratói do templo cigano Devlesa Avilan, localizado na Zona Norte de Teresina.

 

     Meduna – Quantos templos ciganos existem hoje no Brasil?

 

     Osvaldo – Não sei dizer, mas os templos ciganos estão iniciando agora. Quando os ciganos desencarnaram, precisavam ainda trabalhar o que aprenderam, porque eles foram grandes parasitas em vida da cultura. Eles pegavam a cultura de determinado local e levavam para outros lugares. Eles foram fundamentais para a disseminação, entrega e plantio de cultura em determinadas regiões. Com isso eles aprenderam artes nas pedras, nos cristais, saber curar, saber energizar com o ferro, com banhos de ervas, perfumes, cartas... E espiritualmente eles tinham muito a trabalhar. Então eles precisavam vir a Terra para poder fazer esse trabalho, mas não tinha como fazer, não tinham portais para que eles pudessem fazer isso. Por conta disso foram abertas tisaras (casa em romani, que é a língua cigana), nas quais eles não trabalham com os guias de umbanda, trabalham com ciganos na orientação da cultura cigana. E por conta disso, temos poucas tisaras no Brasil, bem menos do que umbanda. No Brasil, só temos esse templo aqui e outro em Fortaleza, onde um irmão tem uma tenda de umbanda na qual de 15 em 15 dias trabalha a corrente cigana.

 

     M – Como funciona o nível de hierarquia dentro do templo cigano?

     O – Sempre existiu um nível de hierarquia para os ciganos. Temos os melichs, que são os mais novos, são as crianças ciganas; depois, temos a passagem de barô, a ratói, seguindo para ratoikiri, shuvanis e manouche, até chegar ao kalinata. O homem não passa por esses graus intermediários. As mulheres já passam de kalinata para manouche, shuvani e puri day, até chegar em baba, que é a mãe grande, e é ela quem coordena todo o acampamento, é o senhor e a senhora de toda a situação.

 

     M – Como é o processo de entrada para a pessoa interessada em participar ativamente das atividades ciganas no templo?

 

     O – Você volta como visitante até o momento que você quiser praticar o desenvolvimento cigano. Existem duas formas de trabalhar com a cultura cigana: a de etnia, na qual você nasce cigano, aquilo está ali no seu sangue; e a outra maneira, aquela em que você é um cigano de alma, você viveu aquele momento em outra vida e, nessa vida, você começa a sentir pela essência sensações de preenchimento quando escuta uma música cigana, por exemplo. Então essas situações podem indicar que você já foi um cigano em vidas passadas, aí quando você entra no templo, sente um complemento ao ver os ciganos dançando, conversando, fazendo seus jogos com os oráculos, cartas, tarôs. Aí você decide entrar nisso. Quando você decide entrar em um templo, você já se torna um melichs. A partir daí a pessoa vai ser iniciada através de um ritual, como a entrega de um portal para que o médium tenha um elo mais forte com o povo cigano, com nossos ancestrais.

 

    M – Como pessoas de outras religiões são recebidas no Devlesa Avilan?

 

O – A gente aceita normalmente, porque o cigano não tem uma só religião, ele é universalista. Temos ciganos católicos, evangélicos... Por exemplo, se chegar uma pessoa católica, ela não vai deixar de ser católica, só vai praticar a nossa filosofia de ser cigano, e pode até não praticar os nossos rituais.

 

    M – Como é feita a preparação dos melichs?

 

    O – Eles vão passar por todo o grau, por todo o ritual. Vale lembrar que a pessoas às vezes levam isso para o lado diabólico, mas a gente lembra que as ervas colocadas nos incensários de uma igreja, ali é um ritual, então ritual não significa uma coisa diabólica. Até porque nossos rituais são todos cheios de rosas, a coisa mais linda e perfumada do mundo. Depois de passados os 13 ritos, eles recebem um grau de sacerdócio, aí sim eles podem abrir um templo cigano, porque aí sim eles vão saber da nossa cultura, saber da origem cigana, saber fazer as essências, os perfumes, as magias, jogar os oráculos, saber conduzir um médium, e estar preparado psicologicamente para saber médiuns de todos os tipos, de todos os jeitos. E só assim ele recebe o quepara, que é um trançado com vários amuletos. Cada amuleto é recebido por cada grau que você vai passando. De obediência, ordem... Os ancestrais vão lhe presenteando, e aquilo vai se transformando em um trançado lindo que traz um axé! Uma energia, uma força! e portais para que você possa ter mãos para poder mexer.

 

     M – Ser melichs ou ser um medium é um grau que a pessoa recebe pela idade que possui ou pelo nível de desenvolvimento?

 

     O – Pelo grau de desenvolvimento. Nós não contamos idade, contamos o grau de desenvolvimento. Existe médium que a gente recebe hoje, e a amanhã ele já está com um cigano lindo! Ele recebe o cigano e ele já está ali falando. E têm pessoas que já estão com seis meses... Aquele médium que acabou de entrar vai ter um preparo mais profundo.

 

     M – É possível e/ou acontece normalmente de pessoas não serem aceitas?

 

     O – Sim. Sabe quando acontece? Quando a pessoa tenta entrar por curiosidade, por sensações, e tenta se encaixar naquilo, mas a própria espiritualidade, a própria pessoa não segue até o final. Antes dela receber um grau, ela se afasta. Quando a pessoa chega a gente senta, coloca as cartas e olha o histórico daquela pessoa,  tentando encaixá-la nos padrões de hoje. Por exemplo, quando jogamos as cartas e vemos a cigana junto com a montanha, isso quer dizer que aquela é uma pessoa que tem um absurdo de problemas, então a gente vai focar para retirá-la desses problemas. Vamos dizer que apareceu ali um ratinho, então essa pessoa tem problema em pegar coisas que não é dela, então a gente vai trabalhar um pouquinho nisso. Geralmente a gente não joga para saber se a pessoa vai ficar ou não, a gente joga só para saber a personalidade da pessoa, como é que aquela pessoa vive na sociedade, como é que aquela pessoa age com a família.

 

     M – Qual o objetivo principal do templo cigano?

 

     O – É a perfeição. Nenhum de nós seres humanos somos perfeitos, porque a partir do momento que nos achamos perfeitos, a gente deixa de ser humano e passa a ser anjo. Então o ser humano evolui para a perfeição, e nesse momento o templo cigano está buscando isso, embora a gente trabalhe de uma forma mais específica, resgatando carmas. Como você é cigano na vida passada, obviamente vai sentir uma dificuldade de viver em um mundo no qual a cultura é totalmente diferente do que você vivia, então você vai sentir uma determinada falta, e aquilo pode estar te envolvendo numa depressão, numa doença. Aí a gente desenvolve esse trabalho nisso, a gente não traz qualquer pessoa, a gente traz ciganos, pessoas que foram ciganos.

 

     M – Qual a função do sacerdote dentro do templo cigano?

 

O – O sacerdote é quem coordena, quem transmite, quem pega o problema de todos os filhos e dá o encaminhamento, cuidando do desenvolvimento dos filhos. Se tem algum filho meu necessitando, eu vou conversar com ele; se ele é indisciplinado, eu vou chamá-lo para conversar. Mas acima de mim temos os nossos ancestrais. O sacerdote tem que estar se policiando e buscando a disciplina dos médiuns, para que eles possam alcançar um grau mediúnico, para que se tornem novos sacerdotes para depois conduzir novos médiuns.

 

     M – Como a caridade é trabalhada dentro do templo?

 

     O – Aceitando pessoas com problemas e ajudando sem cobrar nada. Também têm dias que fazemos sopas e distribuímos na comunidade, fazemos bazar... Nosso movimento de caridade é tanto espiritual quanto material. A gente só não pratica caridade para um jogo de cartas, para um particular com aberturas de caminhos. Mas se chega alguém doente com problema sério de saúde, chega alguém com problema espiritual, a gente recebe, acolhe, cuida. A gente cobra sim – por fora – coisas que chamamos de luxo, porque temos que manter nossa casa. Por exemplo, a fulana de tal está com um emprego, mas ela quer sair para arrumar outro emprego. Ela não está necessitando, realmente, daquele emprego. Outro caso são as amarrações. “Ah, eu quero ficar com a mulher de não sei quem”... Aqui não fazemos isso. Não fazemos trabalhos que prejudiquem alguém.

 

     M – A zona norte, uma área de Teresina caracterizada como uma área de classe social mais baixa, concentra uma grande quantidade de terreiros.  Qual a relevância social desses templos ciganos? Como eles ajudam, por exemplo, a criança que mora em um desses bairros a não se envolver com atividades ilícitas?

 

     O – Nós trabalhamos muito essa importância de transmitir para nossos jovens o valor da cultura e o valor da família, mostrando para elas como seria ruim o envolvimento delas com algo que não poderia ser legal. A gente também trabalha, na maior parte possível, para que eles não possam estar desviando a cabeça para interagir com outro nível de vida. Todo final de mês a gente pega o boletim escolar dessas crianças e analisamos. Como temos alguns médiuns que são professores, eles ajudam aqueles que estão necessitando de algum auxílio com relação a escola. A gente se preocupa, e procura da melhor forma possível ocupar a cabeça dos nossos jovens para que eles não entrem no vandalismo e não tenham curiosidade para experimentar coisas impróprias.

 

     M – Qual a ligação atual entre a umbanda e os ciganos?

 

     O – Atualmente, a ligação da umbanda com os ciganos é somente o astro, porque tanto umbanda quanto ciganos, todos vem de lá. Os ciganos ainda hoje trabalham na umbanda, logo porque nós acreditamos que a umbanda é o berço de todas as religiões, ciências e filosofias. Todo o continente, ele era unido, e por conta da vaidade, do poder da época, a umbanda se deturpou e os continentes se afastaram um do outro. Assim, cada continente pegou um pedaço da umbanda. A umbanda se fragmentou e, depois, ressurgiu aqui no Brasil, onde ela pegou o índio, o preto, o português, o espanhol... Porém, é uma junção das religiões que ainda não está completa. Em um salão vemos santos, orixás, todos os pontos de cada religião. Algumas mais, outras menos. Depende da religião mestra do local onde aquele pai de santo vive.

 

     M – O preconceito normalmente vem da falta de conhecimento. Na sua opinião, enquanto líder de um grupo ainda raro, preconceito tem aumentado ou diminuído com o tempo? Como vocês lidam com a intolerância?

     O – Já sofremos mais.  A gente tentar driblar mostrando nossa cultura de frente! A gente procura tirar as melhores fotos, colocar as melhores músicas... As pessoas costumam ver a gente pelo o lado bem mais cultural do que religioso, e assim parece ser mais aceitável.

 

     M – A pouca visibilidade da questão religiosa, nesse caso, incomoda?

     O – Ah!, sempre incomoda. Você vai passando na rua e as pessoas acham estranho algo que elas não tem. Se você resolve colocar uma blusa do jeito que uma pessoa não usa, ela vai olhar para tua blusa de qualquer forma, então a gente procura não observar essas pessoas que observam a gente. Mas se por acaso a gente observar, a gente vai atrás, vai chamar aquela pessoa, a gente vai conversar, a gente só não volta para casa sem ter dito o que a gente tem que dizer.

 

    M – Ciganos são considerados, pelos mesmos, disseminadores da cultura no mundo. Esse é um dos fatores que fazem a sociedade ver o cigano mais como uma prática cultural do que de religiosidade?

 

   O – Hoje sim, mas antigamente não. Antes não éramos bem vistos, principalmente pelos católicos. A inquisição católica foi umas das piores causas de mortes de ciganos que tivemos. Leis de Portugal exilaram ciganos ao Brasil. O primeiro cigano a pisar em solo brasileiro foi João de Torres, no Maranhão, exilado pelo rei de Portugal, que afirmava que todo cigano deveria sair do país. Na Espanha, o rei junto com o bispo decidiu que toda criança cigana deveria ser retirada dos pais e entregue às famílias “normais”, para que assim a raça cigana fosse extinta. Outras lendas falam que os ciganos foram quem fizeram os pregos utilizados na cruz de Jesus, ou seja, o cigano era caracterizado como algo bem pior do que já era. Com tudo isso, os ciganos não arrumavam empregos e viviam se escondendo em bueiros espalhados pelas cidades.

 

     M – Como poder ser definida a religião cigana?

 

O – É uma religião universalista, que acredita em toda forma de amor, paixão... Tudo que envolve a Deus. Ela não indica que você é errado por fazer isso ou aquilo, ela diz que se você estiver feliz consigo e estiver fazendo algo que não prejudique os outros, aquilo está certo. Só passa a ser mal visto por Deus a partir do momento que machuca alguém com aquilo, então a gente procura a perfeição.

 

    M – E a cultura cigana?

 

O – Nós cantamos quando estamos tristes, nós dançamos quando estamos alegres! A cultura cigana é a dança, os potes da prosperidade. A nossa cultura procura mostrar que nossas cores são viventes e brilhantes, então a gente mostra para os outros que a gente brilha.

 

    M – Qual a maior desejo dos ciganos?

    O – Nossa maior ambição é ter vários templos ciganos para sairmos visitando nossos irmãos ciganos, porque é muito difícil mesmo. Nossa ambição é que tenham vários locais trabalhando com a cultura cigana, com a energia cigana, trabalhando com pessoas de uma forma alegre e feliz. E tendo vários clãs ciganos, nós teremos várias pessoas felizes e muitas sintonias legais.

Se engana quem acha que cigano não é

 

por: Julianna  Galvão

Wallyson Douglas

foto: Emerson Mourão

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